"Podemos dizer que duas vocações opostas se confrontam no campo da literatura através dos séculos: uma tende a fazer da linguagem um elemento sem peso, flutuando sobre as coisas como uma nuvem, ou melhor, como uma tênue pulverulência, ou, melhor ainda, como um campo de impulsos magnéticos; a outra tende a comunicar peso à linguagem, dar-lhe a espessura, a concreção das coisas, dos corpos, das sensações." Italo Calvino in Seis propostas para o próximo milênio
para agora selecionei dos trechos de duas missivas a mim enviadas por antigo amigo de Mococa/SP, Elias Coimbra (felicitações, amigo! e mande um abraço à Luzia e ao Getúlio, com saudades...), ambas de novembro de 2001, ano em que travamos conhecimento e fraternidade.
considero-as verdadeiros tratados de poética, contudo sejam ensaios de um pensador livre.
tais missivas foram escritas como comentários sobre um poema meu, labutado naquele mesmo ano, e prestam para além: como esteio (ou a antítese disto, como será visto) para o trabalho do poeta, em primeiro lugar, e do artista, em alguma instância.
seu título - o do poema - é o mesmo arranjado no alto desta postagem. segue à ordem: primeiro, o dito cujo, matéria dos esforços interpretativos do Elias; depois, os comentários suscitados por ele.
a imaginação procura vulto
a imaginação procura vulto
rebentada num rosto bem senil
a imaginação procura vulto
na vã caminhada dum corpo vil
por desfigurada noite imprópria
a imaginação procura vulto
nas alamedas prenhes sob carril
de lã calada e oferta sóbria
de outros corpos quentes, mas hostis
a imaginação procura vulto
flagrada em si mesma flanco e quadril
empenhada na busca que ignora
malgrado o valor que outro corpo diz
entende o legado ser rés basta
a imaginação procura vulto
em qualquer circunstância ou ardil
que lhe arda no peito tal penhora
sem mesmo justifique sito azis
ou melhora em alta e longa casta
signifique estar além de si, só
a imaginação procura vulto
escolhendo o que restou um em mil.
pede fato pós fato a memória
fale em prol duma mulher meretriz
para agora selecionei dos trechos de duas missivas a mim enviadas por antigo amigo de Mococa/SP, Elias Coimbra (felicitações, amigo! e mande um abraço à Luzia e ao Getúlio, com saudades...), ambas de novembro de 2001, ano em que travamos conhecimento e fraternidade.
considero-as verdadeiros tratados de poética, contudo sejam ensaios de um pensador livre.
tais missivas foram escritas como comentários sobre um poema meu, labutado naquele mesmo ano, e prestam para além: como esteio (ou a antítese disto, como será visto) para o trabalho do poeta, em primeiro lugar, e do artista, em alguma instância.
seu título - o do poema - é o mesmo arranjado no alto desta postagem. segue à ordem: primeiro, o dito cujo, matéria dos esforços interpretativos do Elias; depois, os comentários suscitados por ele.
a imaginação procura vulto
a imaginação procura vulto
rebentada num rosto bem senil
a imaginação procura vulto
na vã caminhada dum corpo vil
por desfigurada noite imprópria
a imaginação procura vulto
nas alamedas prenhes sob carril
de lã calada e oferta sóbria
de outros corpos quentes, mas hostis
a imaginação procura vulto
flagrada em si mesma flanco e quadril
empenhada na busca que ignora
malgrado o valor que outro corpo diz
entende o legado ser rés basta
a imaginação procura vulto
em qualquer circunstância ou ardil
que lhe arda no peito tal penhora
sem mesmo justifique sito azis
ou melhora em alta e longa casta
signifique estar além de si, só
a imaginação procura vulto
escolhendo o que restou um em mil.
pede fato pós fato a memória
fale em prol duma mulher meretriz
que, quando perto, tembém se afasta
cuja falta faz revelar um nó
preenchendo o ser naquilo que preza.
pretende a falta rogar a reza
qual meia poça d'água feita pó.
quer pagar preço que não se gasta
por fêmea vária cuja voz desdiz
ao tal homem sua parva glória
injusta fere-o no cio vil:
"a imaginação procura vulto..."
não entende o homem sua dó
e permanece fera em sua pasta
guardando a si sorver sabor aniz
após entrave de meia hora
e vestindo a roupa qual a um barril
a imaginação procura vulto
e quando de volta, só, em vasta hora
caminhando o espaço tacanho e gris
persuade-se a si de estória
menos perversa. com aspecto sadio
a imaginação procura vulto
voltando mais vez castro de feliz
imanta o furo vazo que implora
driblando fome e sede de mandril
a imaginação procura vulto
ao arranjo de outra coisa fora
lembrando dar paga ao senhorio
a imaginação procura vulto
sempre protegida num "ão" sem til
a imaginação procura vulto
a imaginaçao procura vult...
carta 1: "(...) A poesia é nosso cotidiano espanto, nosso segundo de angústia entre dois outros de efemeridade. Nos custa poetizar - o amor, a vida mesmo - contudo continuamos. Não sei bem porque, mas acho que está relacionado àquilo que você me dizia da expressão do desejo: a poesia seria esta expressão, mais elaborada.
"Mas falemos do seu poema. Em primeiro lugar, tenha consigo que este meio eleito para compor tal trabalho não é dos mais ortodoxos. Digo, esta (ainda) não é a forma sobre a qual desce esta entidade descomunal, enfim reduzida a poucos e rudes versos, a poesia; que difere do poema. É preciso ter em mente que não temos controle sobre ela (a poesia), apenas e talvez sobre o poema. Ele pode estar vazio se falharmos na tentativa de represar umas poucas gotas que seja, daquela 'intempérie'. Ademais, seu poema segue, estranhamente, o padrão dos outros - o estranho é a desumanidade que há naquilo que escreve, a frieza -; mas não quero com isso afirmar que você conseguiu fazer poesia, ortogonalmente, - e também não digo que o que escreveu não seja de todo poesia. E não há contradição nisto tudo, simplesmente porque poesia não é lógica - percebe então a ineficácia do meio que empregou? Absurdo é explicar abstratamente o Sol, por exemplo, ou o céu. Este é, contudo, nosso sistema de pensamento clássico: lá está o sol, ou seja uma bola de hélio e hidrogênio cuja massa é... Cuja uma pinóia!, ou seja, o caralho! É tudo uma grande tolice. Só a poesia não constrange o Sol a se parecer com aquilo que está escrito nos livros de física. A poesia não representa o Sol, e sim o apresenta: aqui, eis o Sol! Sol, este é Rodegarius! "Prazer". Rodegarius, este é o Sol! A poesia é o reino onde nomear é ser; e possuir uma descrição é como está-la. E, tendo no princípio, as coisas, apenas essência, só depois receberam utilidade, a poesia olha-as antes de vê-las. Porque ver é uma atitude intelectual; olhar, basta ter olho - um rio pode olhar, por exemplo.
"Creio que há uma possibilidade enorme de sua poesia alcançar parâmetros reais. Eu não tenho insights como os teus; então escrevo prosa, onde, sendo linear, a linguagem não reserva tantas surpresas. Mas antes proponho que você repudie a razão. Só para exemplificar, vi na última segunda-feira uma entrevista com o Ferreira Gullar no Roda Viva. Entre muitas outras coisas que ele disse - algumas eu já esperava, outras foram surpreendentes - uma chamou demais a atenção; é tal: lhe perguntaram se, entre as coisas que João Cabral de Melo Neto lhe disse, pois eram muito amigos, alguma vez ele houvesse afirmado que fazia poesia segundo uma fórmula algébrica, e qual era ela; posto que João Cabral sempre disse que assim havia. A isto, F. Gullar disse, simplesmente: "Se João Cabral escrevesse a poesia que afirma que escreve, seria um péssimo poeta; mas, felizmente, ele é só um ótimo mentiroso". Então é de se pensar que nem alguém como João Cabral (...) escrevia conscientemente. Talvez você seja o poeta do extremo, mas e se não for? (...) Aí teria que largar o esquadro e o compasso para se arrepender muitas vezes de tê-lo feito. (...)
"(...) sem falar na semelhança atmosférica do contexto com a Máquina do Mundo. Mas, penso, seu poema trás-nos a máquina humana, sem transcendência, porém que não se resolve em si, mas no 'outro' - a tal: alteridade."
carta 2: "Continuando a falar de música, você poderia se lembrar que sou apaixonado por vanguarda e pensar que esqueci de mencionar os renovadores Schöenberg, Stockhausen, Cage etc. O fato é que esta é a segunda parte da história. Disse-lhe a pouco que adorava Mozart e Beethoven porque suas músicas provocavam uma sensação bem agradável em mim. Sempre afirmei isto e, certa vez, uma grande amiga que tive disse-me que eu precisava ouvir Schöenberg. Aceitei o desafio, pois sabia que ele havia inventado a música Dodecafônica, da qual eu só conhecia uma breve descrição abstrata. Ao entregar a ela o CD, ela percebeu em mim algo estranho, eu jamais recuaria diante de uma obra de arte - mesmo que visse um quadro abstrato, eu teria algo a dizer - mas naquele momento eu estava indeciso. Veio a pergunta fatal, ela; 'e aí, o que achou?' - tive de ser franco: 'não gostei!'. Ela se sentiu vitoriosa. (...) A moral disso tudo é a seguinte: a Ehrklärte Nacht do Schöenberg era a explicação lógico-formal para uma maneira nova de fazer música (por isso dizer-se que não existe harmonia schoenberguiana e armonia mozartiana, pois harmonia era uma coisa que Schöenberg eliminou da música). O que ouvi era um algorítimo e não uma música. (...)
"Aqui em Mococa há aquele maestro: o Coelho de Moraes. Conversei com ele acerca da música dodecafônica e descobri que esta não é a mesma coisa que a atonal. Ele disse ainda que Schöenberg não eliminou a harmonia e sim a melodia e que a melodia, até por uma questão histórica, é a própria música. Deu na mesma: aquela música não é exatamente música - por acaso não se diz que os alemães jogam algo parecido com futebol, mas que dá certo?
"Na poesia (...) tenho mais certezas que na música. Sei por exemplo que a poesia concreta já era feita na Babilônia e que estrofes com o formato de pombos eram uma das especialidades dos poetas de Alexandria (...). Sei que o Romantismo destruiu o rigor estético e que os diversos modernismos (...) reinventaram-no. Sei que Mallarmé fazia uma poesia concreta na forma, mas simbolista no conteúdo. E sei que você está tentando aplicar um método científico inidôneo à poesia, numa apologia cega - me perdoe a dureza necessária - ao estruturalismo.
"Descartes deu ao racionalismo sua feição moderna, com a criação do pensamento dedutivo (...). Me parece - talvez me engane - que você está dando mesmo tratamento à poesia. Porém, afirmo a você, com toda força de caráter, que a poesia não é sempre invisível. Aliás, não interessa saber o que ela é e muito menos como e porque ela reage ao mundo dito sensível. Ela é uma expressão em si, como a música. Você dizia a pouco que a poesia é um fim em si mesmo, mas concordo.
" - 'percebe o que disse acima, que concordo, muito embora concorde. E, agora, este parágrafo, como se lhe falasse diretamente' - "
"Poesia, então, não é nem uma coisa, é outra. Eu dizia na outra carta que, para você aperfeiçoar sua técnica, seria necessário seguir um caminho certo - mesmo que você desse um passo para trás, o desse na direção certa. Eu talvez esteja errado e você certo; talvez os dois estejamos certos; talvez ambos errados. O que sei é que vamos continuar a fazer poesia, cada um a seu modo e conseguiremos fazer a mesma coisa de maneira extremamente distinta - daí emana a inutilidade destas nossas cartas: que são também poesia, pois somos poetas."
