quarta-feira, novembro 22, 2006

i (y).6/6.Vy

"Podemos dizer que duas vocações opostas se confrontam no campo da literatura através dos séculos: uma tende a fazer da linguagem um elemento sem peso, flutuando sobre as coisas como uma nuvem, ou melhor, como uma tênue pulverulência, ou, melhor ainda, como um campo de impulsos magnéticos; a outra tende a comunicar peso à linguagem, dar-lhe a espessura, a concreção das coisas, dos corpos, das sensações." Italo Calvino in Seis propostas para o próximo milênio

para agora selecionei dos trechos de duas missivas a mim enviadas por antigo amigo de Mococa/SP, Elias Coimbra (felicitações, amigo! e mande um abraço à Luzia e ao Getúlio, com saudades...), ambas de novembro de 2001, ano em que travamos conhecimento e fraternidade.

considero-as verdadeiros tratados de poética, contudo sejam ensaios de um pensador livre.

tais missivas foram escritas como comentários sobre um poema meu, labutado naquele mesmo ano, e prestam para além: como esteio (ou a antítese disto, como será visto) para o trabalho do poeta, em primeiro lugar, e do artista, em alguma instância.

seu título - o do poema - é o mesmo arranjado no alto desta postagem. segue à ordem: primeiro, o dito cujo, matéria dos esforços interpretativos do Elias; depois, os comentários suscitados por ele.


a imaginação procura vulto

a imaginação procura vulto
rebentada num rosto bem senil
a imaginação procura vulto
na vã caminhada dum corpo vil
por desfigurada noite imprópria
a imaginação procura vulto
nas alamedas prenhes sob carril
de lã calada e oferta sóbria
de outros corpos quentes, mas hostis
a imaginação procura vulto
flagrada em si mesma flanco e quadril
empenhada na busca que ignora
malgrado o valor que outro corpo diz
entende o legado ser rés basta
a imaginação procura vulto
em qualquer circunstância ou ardil
que lhe arda no peito tal penhora
sem mesmo justifique sito azis
ou melhora em alta e longa casta
signifique estar além de si, só
a imaginação procura vulto
escolhendo o que restou um em mil.
pede fato pós fato a memória
fale em prol duma mulher meretriz
que, quando perto, tembém se afasta
cuja falta faz revelar um nó
preenchendo o ser naquilo que preza.
pretende a falta rogar a reza
qual meia poça d'água feita pó.
quer pagar preço que não se gasta
por fêmea vária cuja voz desdiz
ao tal homem sua parva glória
injusta fere-o no cio vil:
"a imaginação procura vulto..."
não entende o homem sua dó
e permanece fera em sua pasta
guardando a si sorver sabor aniz
após entrave de meia hora
e vestindo a roupa qual a um barril
a imaginação procura vulto
e quando de volta, só, em vasta hora
caminhando o espaço tacanho e gris
persuade-se a si de estória
menos perversa. com aspecto sadio
a imaginação procura vulto
voltando mais vez castro de feliz
imanta o furo vazo que implora
driblando fome e sede de mandril
a imaginação procura vulto
ao arranjo de outra coisa fora
lembrando dar paga ao senhorio
a imaginação procura vulto
sempre protegida num "ão" sem til
a imaginação procura vulto
a imaginaçao procura vult...

carta 1: "(...) A poesia é nosso cotidiano espanto, nosso segundo de angústia entre dois outros de efemeridade. Nos custa poetizar - o amor, a vida mesmo - contudo continuamos. Não sei bem porque, mas acho que está relacionado àquilo que você me dizia da expressão do desejo: a poesia seria esta expressão, mais elaborada.

"Mas falemos do seu poema. Em primeiro lugar, tenha consigo que este meio eleito para compor tal trabalho não é dos mais ortodoxos. Digo, esta (ainda) não é a forma sobre a qual desce esta entidade descomunal, enfim reduzida a poucos e rudes versos, a poesia; que difere do poema. É preciso ter em mente que não temos controle sobre ela (a poesia), apenas e talvez sobre o poema. Ele pode estar vazio se falharmos na tentativa de represar umas poucas gotas que seja, daquela 'intempérie'. Ademais, seu poema segue, estranhamente, o padrão dos outros - o estranho é a desumanidade que há naquilo que escreve, a frieza -; mas não quero com isso afirmar que você conseguiu fazer poesia, ortogonalmente, - e também não digo que o que escreveu não seja de todo poesia. E não há contradição nisto tudo, simplesmente porque poesia não é lógica - percebe então a ineficácia do meio que empregou? Absurdo é explicar abstratamente o Sol, por exemplo, ou o céu. Este é, contudo, nosso sistema de pensamento clássico: lá está o sol, ou seja uma bola de hélio e hidrogênio cuja massa é... Cuja uma pinóia!, ou seja, o caralho! É tudo uma grande tolice. Só a poesia não constrange o Sol a se parecer com aquilo que está escrito nos livros de física. A poesia não representa o Sol, e sim o apresenta: aqui, eis o Sol! Sol, este é Rodegarius! "Prazer". Rodegarius, este é o Sol! A poesia é o reino onde nomear é ser; e possuir uma descrição é como está-la. E, tendo no princípio, as coisas, apenas essência, só depois receberam utilidade, a poesia olha-as antes de vê-las. Porque ver é uma atitude intelectual; olhar, basta ter olho - um rio pode olhar, por exemplo.
"Creio que há uma possibilidade enorme de sua poesia alcançar parâmetros reais. Eu não tenho insights como os teus; então escrevo prosa, onde, sendo linear, a linguagem não reserva tantas surpresas. Mas antes proponho que você repudie a razão. Só para exemplificar, vi na última segunda-feira uma entrevista com o Ferreira Gullar no Roda Viva. Entre muitas outras coisas que ele disse - algumas eu já esperava, outras foram surpreendentes - uma chamou demais a atenção; é tal: lhe perguntaram se, entre as coisas que João Cabral de Melo Neto lhe disse, pois eram muito amigos, alguma vez ele houvesse afirmado que fazia poesia segundo uma fórmula algébrica, e qual era ela; posto que João Cabral sempre disse que assim havia. A isto, F. Gullar disse, simplesmente: "Se João Cabral escrevesse a poesia que afirma que escreve, seria um péssimo poeta; mas, felizmente, ele é só um ótimo mentiroso". Então é de se pensar que nem alguém como João Cabral (...) escrevia conscientemente. Talvez você seja o poeta do extremo, mas e se não for? (...) Aí teria que largar o esquadro e o compasso para se arrepender muitas vezes de tê-lo feito. (...)
"(...) sem falar na semelhança atmosférica do contexto com a Máquina do Mundo. Mas, penso, seu poema trás-nos a máquina humana, sem transcendência, porém que não se resolve em si, mas no 'outro' - a tal: alteridade."
carta 2: "Continuando a falar de música, você poderia se lembrar que sou apaixonado por vanguarda e pensar que esqueci de mencionar os renovadores Schöenberg, Stockhausen, Cage etc. O fato é que esta é a segunda parte da história. Disse-lhe a pouco que adorava Mozart e Beethoven porque suas músicas provocavam uma sensação bem agradável em mim. Sempre afirmei isto e, certa vez, uma grande amiga que tive disse-me que eu precisava ouvir Schöenberg. Aceitei o desafio, pois sabia que ele havia inventado a música Dodecafônica, da qual eu só conhecia uma breve descrição abstrata. Ao entregar a ela o CD, ela percebeu em mim algo estranho, eu jamais recuaria diante de uma obra de arte - mesmo que visse um quadro abstrato, eu teria algo a dizer - mas naquele momento eu estava indeciso. Veio a pergunta fatal, ela; 'e aí, o que achou?' - tive de ser franco: 'não gostei!'. Ela se sentiu vitoriosa. (...) A moral disso tudo é a seguinte: a Ehrklärte Nacht do Schöenberg era a explicação lógico-formal para uma maneira nova de fazer música (por isso dizer-se que não existe harmonia schoenberguiana e armonia mozartiana, pois harmonia era uma coisa que Schöenberg eliminou da música). O que ouvi era um algorítimo e não uma música. (...)
"Aqui em Mococa há aquele maestro: o Coelho de Moraes. Conversei com ele acerca da música dodecafônica e descobri que esta não é a mesma coisa que a atonal. Ele disse ainda que Schöenberg não eliminou a harmonia e sim a melodia e que a melodia, até por uma questão histórica, é a própria música. Deu na mesma: aquela música não é exatamente música - por acaso não se diz que os alemães jogam algo parecido com futebol, mas que dá certo?
"Na poesia (...) tenho mais certezas que na música. Sei por exemplo que a poesia concreta já era feita na Babilônia e que estrofes com o formato de pombos eram uma das especialidades dos poetas de Alexandria (...). Sei que o Romantismo destruiu o rigor estético e que os diversos modernismos (...) reinventaram-no. Sei que Mallarmé fazia uma poesia concreta na forma, mas simbolista no conteúdo. E sei que você está tentando aplicar um método científico inidôneo à poesia, numa apologia cega - me perdoe a dureza necessária - ao estruturalismo.
"Descartes deu ao racionalismo sua feição moderna, com a criação do pensamento dedutivo (...). Me parece - talvez me engane - que você está dando mesmo tratamento à poesia. Porém, afirmo a você, com toda força de caráter, que a poesia não é sempre invisível. Aliás, não interessa saber o que ela é e muito menos como e porque ela reage ao mundo dito sensível. Ela é uma expressão em si, como a música. Você dizia a pouco que a poesia é um fim em si mesmo, mas concordo.
" - 'percebe o que disse acima, que concordo, muito embora concorde. E, agora, este parágrafo, como se lhe falasse diretamente' - "
"Poesia, então, não é nem uma coisa, é outra. Eu dizia na outra carta que, para você aperfeiçoar sua técnica, seria necessário seguir um caminho certo - mesmo que você desse um passo para trás, o desse na direção certa. Eu talvez esteja errado e você certo; talvez os dois estejamos certos; talvez ambos errados. O que sei é que vamos continuar a fazer poesia, cada um a seu modo e conseguiremos fazer a mesma coisa de maneira extremamente distinta - daí emana a inutilidade destas nossas cartas: que são também poesia, pois somos poetas."

terça-feira, novembro 21, 2006

fibonaccico

um grande amigo, que considero como a um irmão - o único que tenho -, trabalhou durante certo período de sua vida uma estrutura poética já antes labutada por muçulmanos e antigos cristãos: o Fibonaccico. consiste em uma fómula determinada pelo número áureo (1,683 - corrija-me irmão, caso isto seja um engano meu!) estabelecido por Fibonacci em época anterior à Pitagoras.

a versificação é bastante simples, à medida do que tento expôr: ao verso posterior soma-se a quantidade silábica do verso anterior, desse modo: o primeiro verso compõe-se de uma sílaba; o segundo já é composto de duas (1+1); o terceiro, de três (2+1); o quarto, de cinco sílabas (3+2); o quinto verso, de oito sílabas (5+3); o sexto verso, de treze (8+5); e, por último, o sétimo, composto de 21 sílabas (13+8). desconsidera-se a sílaba tônica como unidade métrica.

segue exemplo, rasteiro porque meu, e não do meu irmão.

quer
o meu
cobertor
proteger tudo
o que tem abaixo de si;
quer me esconder de pensamentos ardis, pois
à noite, no só do quarto, é difícil fingir que monstros não existem.

outro exemplo, desta vez um pouco menos ortodoxo.

sim.
ouvi:
barulho?
está chovendo.
logo cairá cá em nós...
água mole, pedra dura: fura a pedra!
arde pa arufa rudar, de pelo mau gá - a ugá; a ugá, ugá!

cortázar x dalton trevis

um troço brilhante apareceu no meu quarto enquanto dormia e antes que me assustasse, me disse "concedo-te a graça de escolher entre um e outro: Julio Cortázar ou Dalton Trevisan... com qual queres te semelhar na escrita? escolhe e sê, assim tão logo o digas a mim". e fiquei entre um e outro, a graça do Dalton e a firmeza do Julio, a extensão do Julio e a concisão do Dalton, a simplicidade do Dalton e a alegoria do Julio, a excentricidade do Julio e a solidão do Dalton... passou... a voz tanto esperou que esqueceu a que veio e foi embora, acho. aí voltei a dormir. a mulher disse que foi sonho porque ela não viu nada nem ouviu. dia seguinte, então. agora penso se não foi mesmo melhor ter ficado do jeito que já estou, só isso, com os dois e com nenhum. fechei; mas se fosse Drummond...

aquário

quando o peixe o aquário olha
não o vemos e ele chora
ele muda e respira doutra forma
e nos olha de volta quando escolhe
e quando nos olha submerso
emerge um outro peixe
mais errático, até absorto
quem sabe: enfático? outro peixe
a deslindar o aquário, não o dele
a dizer que as formas são várias
de prisões enclausurantes
nenhuma delas ordinária
embora todas distorçam o de dentro
e digam que o fora
é a prisão do outro lado - lá dentro -
outro peixe aflora
não mais o que é visto agora
- apaziguado no vibramento aquático -
mas o que de dentro para fora
se diz singularmente isento.

amestrado

o que pode encontrar o homem
no vasculhar de uma vida vazia?

o que pode ele objetar? quando lembrarmo-lhe
aquele enígma tão insolúvel
aquela hora tão aguardada e inútil
que num espanto fez seu lance e passou

o que pode encontrar o homem
ao comparar sua vida com outra, repetida?

quando em casa e acoado
estiver esperando pela última hora prometida
afim de poder observar de longe sua herança
e notar que os pássaros comeram o trilho de pão...

onde poderá estar o homem
em cuja história esqueceu-se de si?

e de se seguir.

quinta-feira, novembro 16, 2006

da sessão autores incríveis os quais jamais li:

"Como um ancião grego que faz os mortos aparecerem e os vivos tremerem. Ou escrever como o Homem das Neves que vaga sozinho e descalço. Registrar a montanha, anotar o mar com ponta fina, como que traçando um molde para bordado. Escrever como o caixeiro-viajante russo que prossegue em seu caminho daqui até a China: encontrou uma cabana. Traçou um esboço. À tardinha olhou, à noite desenhou, antes da aurora terminou, se levantou. Pagou e continuou seu caminho ao romper do dia."
Como eu gostaria de escrever?, de Amós Oz in O mesmo mar
dois momentos de Jacques Rancière in Políticas da Escrita:

a) "A chave de um texto é, comumente, um corpo. Achar um corpo debaixo de letras, em letras, se chamava exegese, no tempo em que os doutores cristãos reconheciam nas histórias do Antigo Testamento outras tantas figuras do corpo por vir da encarnação do Verbo. Em nossa idade leiga chama-se a isso, habitualmente, de desmistificação ou, pura e simplesmente, de leitura."

b) "(...) o livro da religião, e em particular o da religião cristã, não é a parúsia de nenhum corpo de verdade. O corpo que o realiza é aquele que se apaga entre o abandono da cruz e a descoberta do túmulo vazio."

segunda-feira, novembro 13, 2006

a crítica elogiosa é um artefato bélico

o método crítico consiste em esquadrinhar e ampliar particularidades pertinentes à obra que se pretende artística. nisto os aspectos semiológicos de ordem variada (estruturais, estéticos, históricos, filosóficos, lingüísticos, estilísticos, exegéticos e mais) são apontados e comparados, medidos e qualificados de acordo com um determinado modo operatório da palavra sobre o artístico.

aí temos um pequeno problema a ressaltar, pois a obra que se pretende artística só nasce enquanto arte quando insta o olhar sobre si mesma, quando faz manifestar numa alteridade o ímpeto em interpretá-la e inaugurá-la esteticamente. antes disso o objeto artístico é somente trabalho pronto, às vezes nem isso.

a crítica elogiosa, mesmo que tente dignamente regimentar o maior número de capitulações possíveis acerca do objeto, já está embutida e abotoada à obra, de forma que as articulações que dela emerjam não possam ser consideradas propriamente críticas. pode-se dizer até que uma crítica desta natureza faça somente o ornamento da obra em questão, entendida já de saída, e sem qualquer debruçamento por parte do crítico, como "trabalho de arte".

a conseqüência pior, nos termos do modo crítico empenhado, é a mera utilização do pormenor estético, e só dele, para inventariar toda a gama correspondente aos outros aspectos pertinentes à verdadeira crítica.

daí a crítica elogiosa não poder jamais ser considerada um modelo consistente e confiável de articulação. o crítico de arte, ou aquele que se pretende crítico, perde seu precioso emprego literário com o olhar arbitrariamente contemplativo, estando enfiado pelos pés no fenômeno relacional artístico.

alguns poderiam dizer que o elogio da crítica seria uma outra espécie de objeto artístico, um outro tipo de obra de arte. eu, contudo, não diria tal coisa, pois ao nos lançarmos sintaticamente sobre qualquer obra, artística ou não, o objeto passa a ser tratado com dada organização, com tanto comércio e pulso, que não mais se mantém controlado ou controlável, passando também a ser introduzido em outro ambiente, não mais o original, mas um novo, com o qual o artísta talvez nem mantivesse contato anterior.

poderia ainda afirmar que a crítica elogiosa não se pretende nada para além de mera cópia da obra olhada. o belicismo registrado em tais intenções, que trabalham quase sempre no nível da "intimidade privilegiada" com a obra de arte, circunda mecanismos rasos de introspecção, tal qual exercícios de auto-análise ou confissões do foro íntimo. constituem mais o falseio e o desejo do suposto crítico em marcar na lábia o labor daquele que se propõe verdadeiramente a lançar óbito de outros prazeres para beneficiar a arte.

domingo, novembro 05, 2006

pássaro primitivo

não sou eu quem te observa
nem ninguém pra ser teu olho
se teus olhos vêem névoa
os meus vêem teu vôo

ou se o solo fosse abaixo
quando o pouso é estadia
todo o céu envolto em nada
é lugar e moradia.

que pássaro eterno plana
sobre as cabeças dos que te olham?
que retração ilógica emana
da plumagem que não vemos influir

sobre o vôo e te protege o corpo?
que lugar intuitivo ocupas
quando levantas teu sopro ancestral?
quando declamas o ar orgânico...

quando resolves ocupar o teu reinado...
limitas-te num ser completo
e em tua glória és secreto
tão secreto o teu pedido.

quarentena

houve um tempo em que meu filho ainda tinha 1 ano e meio. ele me pediu numa tardinha, voluntariosamente, para que lhe fizesse uma leitura de algum conto do Rubem Fonseca. logo achei que fosse para embalar-lhe o sono, então encontrei um curtinho, mas não muito, afim de dar o tempo certo para a dormida do rapazinho: escolhi O Inimigo.

lá pelas tantas, mal sucedido e entediado como serviço, o pequeno todo alerta perguntou-me se eu tinha medo de morrer, "pai, você tem medo de morrer?"; respondi que não, assim, num sem pulo, sem pensar, e o menino colou de novo, "eu morri duas vezes, pelo menos. quer ver mais uma?"

só sei que o negócio começou a ficar totalmente torto quando duvidei dele e o coloquei de castigo por 28 dias, sem água nem comida, absolutamente trancado no quarto sem luz, achando que tais medidas fossem resolver minha sensação de estupidez.

quando voltei para pedir desculpas (estava tomado pelo remorso) e tirá-lo da quarentena - porque o propósito era deixá-lo "pensar sobre o que fez" por umas cinco semanas - eu o encontrei lá, sentado, parado, durinho-da-silva, queném pedra, só que suspenso no ar. meu filho abriu lentamente os olhinhos desacostumados com a claridade vinda do corredor, e desceu bem devagarzinho, quase imperceptivelmente, até o chão. agachadinho no tapete úmido do quarto escuro aprecebeu-se de minha presença e disse, entre a brandura e a alegria, "viu só, pai, morri de novo!"

tranquilizado, eu o empoleirei nos meus braços e redargui que aquilo não era morrer, mas levitar. o pequeno, meio sonso ainda, concordou com um doce ah!, daqueles que resolvem qualquer parada entre amigos, e dormiu pesado no meu abraço.